Dia Mundial da Dança por José Carlos Alvarez

Por ocasião do Dia Mundial da Dança, hoje temos connosco José Carlos Alvarez, director do Museu Nacional de Teatro e Dança e professor no nosso Âmbito Cultural, fique com a crónica sobre Dança preparada em exclusivo para o Âmbito Cultural.

Fique em casa, nós vamos até si!

APONTAMENTOS DISPERSOS ACERCA DA HISTÓRIA DA DANÇA EM PORTUGAL NO SÉCULO XX  (*)

Comemorar ou, tão só, evocar o Dia Mundial da Dança num tempo tão trágico e, sobretudo, tão cruel e difícil para todos os agentes e criadores desta Arte espalhados pelo mundo, não parece fazer grande sentido. Ou, paradoxalmente, fará, até mais do que num mundo “normal”…

As artes performativas, como a dança, o teatro, a ópera, a música ou a performance propriamente dita, vivem e dependem, sempre, da relação direta com o público e, sobretudo, da sua  presença física e ( e meta-fisica).

O que diferencia as artes do espetáculo das outras artes, que produzem uma obra que perdurará através dos tempos (uma pintura, uma escultura), é o seu carácter efémero: produz-se algo para desaparecer de seguida (o espetáculo de teatro), e o que se produz é resultado, não do trabalho individual, solitário, do artista, mas antes de uma equipa especializada em muitas artes e saberes sendo, portanto, produto de vários processos criativos (o escritor, o compositor, o coreógrafo, o cenógrafo, o bailarino, o ator, o luminotécnico, etc). A particularidade destas artes, ao contrário do cinema, da fotografia ou da pintura, é a sua capacidade em organizar artisticamente (e esteticamente) o tempo e o espaço debaixo dos nossos olhos, isto é, de o podermos ver e olhar nesse momento, sempre como se fora a primeira e única vez.

Por isso, o bailarino ou o ator são, também, uma presença física viva em cena, e são eles que mantêm uma espécie de relação “corpo a corpo” com o espetador, com o público. Ora, numa época tão estranha e catastrófica e como aquela em que atualmente vivemos, com teatros e espaços de representação encerrados, existência de qualquer tipo de público suspensa (com exceção do virtual) e, sobretudo, a tal relação “corpo a corpo”,  primeiro entre os próprios artistas e criadores e, depois, no espetáculo  (com o público), totalmente interdita, como vive e sobrevive uma arte tão física como a dança?

A relação das artes com as doenças e, em particular, com as epidemias, é ancestral e marca, em maior ou menor grau, a História Universal da Arte e da produção e criação artística. Por isso, sendo este tempo, para nós, um tempo novo, desconhecido e sinistro, que parece esmagar as nossas vidas e tudo o que de belo e menos belo constitui o seu quotidiano, historicamente não é um tempo novo; talvez cíclico, apenas…

Por isso, penso ser oportuno observarmos, de forma muito resumida,  como os artistas e as diferentes artes que constituem e têm construído o nosso sistema artístico, estético, moral e, mais recentemente, influenciado os nossos comportamentos culturais, sociais e hábitos de consumo, foram inspirados  por outras epidemias ou por outras doenças.

 

Logo no século XV, Boticelli utiliza como modelo das suas obras primas,  “O Nascimento de Vénus” e a “Primavera”, Simonetta Vespucci, considerada a mulher mais bela do Renascimento, ou a Inigualável, nas palavras do pintor, que morreu de tuberculose aos 22 anos.  Foi, provavelmente, a doença epidémica/contagiosa (também conhecida como a Peste Branca) que mais influenciou a definição do gosto e do belo durante vários séculos, sobretudo na pintura e na literatura. O tom de pele macilento e esbranquiçado, quase transparente, a forçada elegância de formas, o olhar intenso fortemente marcado pelas olheiras ( leia-se a descrição da personagem Maria, feita por Garrett no “Frei Luís de Sousa”, a propósito da doença que a atinge, a tuberculose, curiosamente num tempo de outra peste em Lisboa).

 

Este quase mórbido fascínio por esta doença, atinge o seu auge nos séculos XIX e inicio do XX, com autores como Alexandre Dumas, na “Dama das Camélias”, na qual a tuberculose é assumida como a “doença do amor”, na personagem de Violeta, que inspirou a ópera de Verdi “ A Traviata”, também presente na ópera  “La Bohème”, de Puccini, ou Lord Byron, Dostoiévski, Thomas Mann, Edgar Alan Poe, Sylvia Plath, Nelson Rodrigues e Agustina Bessa-Luís. Apenas quando as elites culturais e sociais perceberam que a tuberculose, afinal, era sobretudo uma enfermidade altamente contagiosa e potencialmente epidémica nas populações com condições de vida mais difíceis, é que perde aquela espécie de aura relacionada com o belo e com a boémia artística,  caso único na longa História das doenças na Humanidade, na qual continua a fazer vítimas diariamente.

Para além da tuberculose, outras referências me parecem interessantes neste contexto,  destacando a extraordinária obra do escritor britânico do século XVIII Daniel Defoe, “Um Diário do Ano da Peste”, publicada em 1722.

Já nos nossos dias, duas doenças têm marcado fortemente o meio artístico em geral, e a dança em particular: o cancro e a SIDA, tendo tido esta última um enorme impacto na sociedade contemporânea. A este propósito, é imprescindível a leitura de “A Doença como Metáfora”, de Susan Sontag.

 

Mas não posso concluir esta pequena introdução com uma curiosidade trágico-pitoresca, ainda de âmbito “epidémico”: a Dança é a única arte que se pode ufanar de ter dado origem, ela própria, a uma epidemia, a “Epidemia da Dança”, como ficou conhecido na História, um fenómeno de histeria ou delírio coletivo, ocorrido em 1518 em Estrasburgo, quando uma parte substancial da população veio para a rua dançar continuada e inexplicavelmente, durante quase um mês, muitas delas até à morte.

Em Portugal, por mera casualidade, dois dos maiores acontecimentos da nossa História da Dança do século XX, tendo ambas em comum a receção de companhias de dança ou bailarinos internacionais, coincidem com o início e o fim da última grande pandemia que, também tragicamente,  nos visitou há aproximadamente 100 anos, a gripe espanhola ou pneumónica.

Em dezembro de 1917 chegava a Lisboa uma das mais (se não a mais) importantes  e marcantes companhias de dança do século XX, Os Ballets Russes, tendo por cá permanecido, inesperada e forçadamente, cerca de 3 meses, coincidindo a sua partida, em março de 1918, com a chegada da pneumónica. Em meados de 1919, desembarca na nossa capital a Companhia de Anna Pavlova, também unanimemente considerada a grande bailarina naquele século, no  momento em que a pneumónica começava a dar sinais de partir em definitivo.

 

Curiosamente, existem raríssimas referências à ação necessariamente negativa que esta pandemia terá tido no meio e na criação artística, quer em Portugal (as referências às mortes do pintor Amadeo de Souza-Cardoso e do pianista António Fragoso são, disso, quase exceção), quer fora dele.

Sabemos, por exemplo, que os teatros de Lisboa nunca encerraram por causa da gripe espanhola, alguns deles, como o Teatro de São Carlos, que se encontrava encerrado há algum tempo, abrirem até as suas portas exatamente no período da pandemia. O Teatro de São Carlos reabriu, primeiro para acolher os Ballets Russes e, depois, para receber vários espetáculos de dança, como o histórico “A Princesa dos Sapatos de Ferro”, influenciadíssimo pelos Ballets Russes, com música de Ruy Coelho, cenários de José Pacheko e coreografia e figurinos de Almada Negreiros, que também dançou.

 

Contrariamente ao que se passou por cá (e, também contrariamente, mas em sentido inverso, ao que atualmente se passa) foi nos Estados Unidos da América que, em muitas das grandes cidades, como Filadélfia, Nova Iorque, Chicago ou Austin, a gripe espanhola levou mesmo ao encerramento de todos os teatros outras casas de espetáculo e festivais

Este não encerramento dos teatros em Portugal, que eram o centro da vida cultural, social e mundana das grandes cidades de então, também não se verificou em Espanha onde, de acordo com a biografia da bailarina Lydia Lopokova, dos Ballets Russes, exatamente antes de chegarem a Portugal, “Madrid parecia habitada por fantasmas, com uma grande parte da população doente” e Barcelona, “onde as pessoas se mantinham fechadas nas suas casas, traumatizadas pela enorme letalidade da epidemia da gripe”. É, aliás, nesta biografia de Lydia Lopokova, que também dançou em Lisboa, que se encontram algumas das raras referências à gripe espanhola e, no caso, à sua ligação com os bailarinos daquela Companhia: ainda em Barcelona, conta a artista,  “vários bailarinos também ficaram doentes, sentindo-se como que sitiados, procurando ansiosamente uma cura rápida para as dores e calafrios paralisantes que sinalizavam o início da infeção”. Felizmente, todos eles sobreviveram, regressando precisamente aos palcos em Lisboa.

E é esta atribulada passagem dos Ballets Russes por Lisboa que vou considerar como o primeiro grande momento da História da Dança em Portugal no século XX, não só pelo que representou em si mesma, pela oportunidade única de o público português poder ver em palco aquela quer era a mais importante Companhia de Dança daquele tempo, mas sobretudo por aquilo que influenciou a nossa História do Bailado durante várias décadas do século XX.

Do Manifesto “Os Bailados Russos em Lisboa” assinado por Almada Negreiros, José Pacheco e Ruy Coelho, em Outubro de 1917,  à publicação de monografias sobre dança, destacando-se obviamente Manuel de Sousa Pinto e, sobretudo da enorme influência que a estética e a ideia dos Ballets Russes tiveram em alguns dos nossos maiores artistas, como Almada Negreiros.

 

 

Poucos anos depois, o fascínio pelos Ballet Russes permanecia intacto na vida artística da nossa capital, influenciando decisivamente aqueles que podem ser considerados os nossos dois primeiros bailarinos (no sentido mais clássico da palavra), Luis Turcifal (Reis Santos) e Florêncio (Francis Graça), e que iria culminar depois, já em 1940, com a criação por António Ferro da Companhia Portuguesa de Bailados Verde Gaio, a primeira companhia portuguesa de dança, concebida, à nossa escala e dimensão, à imagem (ou no espirito) dos Ballets Russes.

Desta forma, o pensamento base que orientou a criação desta companhia de bailados foi  que evocasse ou se inspirasse, do ponto de vista estético e temático, em temas nacionais, no folclore e nas tradições. Para isso,  contou com a colaboração de grandes nomes da época na coreografia, composição musical e artes plásticas.

Na origem da companhia estiveram, para além de António Ferro, o bailarino e coreógrafo Francis Graça (grande inovador do teatro musicado em Portugal e o principal responsável pela coreografia nos anos de maior vitalidade do grupo), o compositor Frederico de Freitas e o pintor Paulo Ferreira (o mais importante colaborador plástico do Verde Gaio).

Esta Companhia de Dança estreou-se no Teatro da Trindade a 8 de Novembro de 1940. Nos primeiros dez anos, período de apogeu da companhia, foram apresentados grande número de bailados, com aplauso mais ou menos generalizado da crítica e do público. O rigor técnico das produções nem sempre correspondia ao que seria exigido, sendo exceção  o par principal formado por Francis Graça e Ruth Walden. Quase todos os restantes bailarinos tinham, de início, uma formação e experiência muito básica, imperando a boa vontade e o voluntarismo, à boa maneira portuguesa.

Na década de 50 a Companhia entra numa fase de decadência (artística, criativa, de produção), que se arrastará penosamente até ao seu fim, em 1977, ano em que é criada a Companhia Nacional de Bailado.

 

Em 1944, Margarida de Abreu (1915-2006), com sólida formação em bailado fora de Portugal, sobretudo, entre 1937-38 no Sadler’s Wells, de Londres, hoje a Royal Ballet School, criou o Círculo de Iniciação Coreográfica/CIC, que encerrou em 1960,  cujo objetivo era a divulgação do bailado clássico. Curiosamente, mais uma vez a presença artística de Almada Negreiros se faz sentir, sobretudo como figurinista de coreografias criadas por este Círculo. Dois anos mais tarde, Margarida de Abreu, publicou um manifesto em defesa da dança e do seu ensino como forma de arte. No início dos anos 60, Margarida de Abreu e o seu antigo aluno, Fernando Lima, assumem a direção artística da Companhia de Bailados Verde Gaio, tentando contrariar a sua  decadência e, sobretudo,  a estilização do folclore como ideia artística dominante naquela Companhia. Entre 1964 e 1972, dirigiu a Escola de Bailado do teatro Nacional de São Carlos.

Foi no Círculo de Iniciação Coreográfico/CIC que Armando Jorge (1938) iniciou a sua notável carreira de bailarino e, depois, de coreógrafo, figurinista, cenógrafo, diretor artístico e professor. Com o Curso Superior de Pintura da Escola de Belas-Artes de Lisboa, depois da sua passagem pelo CIC, fez parte, sucessivamente, do Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, dos Grands Ballets Canadiens e, finalmente, do Ballet Gulbenkian.

Armando Jorge foi ainda diretor da Companhia Nacional de Bailado (1978-1993), tendo tido um papel determinante, tanto redefinição estética e de repertório desta Companhia, como na ampliação de funções de carácter mais pedagógico e formativo da mesma.

 

Colaborou ainda, na fase inicial da criação do Círculo de Iniciação Coreográfica, Anna Mascolo (1930-2019), nascida em Itália, mas vindo para Lisboa ainda jovem e ex-aluna de Margarida de Abreu.  Passou igualmente pela Companhia de Bailados Verde Gaio e esteve no embrião do que viria a ser o futuro Ballet Gulbenkian. Pertencente a um grupo de pioneiros da dança em Portugal, criou, em 1958, uma importante instituição pedagógico/cultural, o “Estúdio Escola de Dança Clássica de Anna Mascolo, onde desenvolveu seu método de ensino de dança clássica e por onde passaram, como alunos, muitas das principais figuras do nosso bailado dos últimos anos, nomeadamente Jorge Salavisa, Manuela Valadas, Miguel Lyzarro, Palmira Camargo, Maria José Palmeirim, Paula Massano, Olga Roriz, Ana Rita Palmeirim, Vera Mantero e Mário Franco, entre outros.

 

Deste grupo de ex-alunos, absolutamente notável, destaco Paula Massano (1949-2012) coreógrafa  nas décadas de 1980 e 1990 e uma das primeiras impulsionadoras do movimento de rutura, que ficou conhecido como Nova Dança Portuguesa. Paula Massano,  além da formação em dança, em Portugal e no estrangeiro, onde estagiou com Merce Cunningham, um dos mais importantes coreógrafos do século XX,  estudou arquitetura, sendo muito vincada, nas suas coreografias, a ligação às artes plásticas e à literatura.

Tal como a Companhia Portuguesa de Bailados Verde Gaio tentou adotar o formato dos Ballets Russes, à nossa escala, convocando, como desenhadores de cena, alguns dos pintores nacionais mais importantes (ou mais modernos) desse período: Maria Keil, Bernardo Marques, Carlos Botelho, Milly Possoz, Tom, Paulo Ferreira e José Barbosa, não sendo surpreendente, não deixa de ser curioso que, anos mais tarde, o Ballet Gulbenkian, que marcou uma clara ruptura com o passado e que foi, sob todos os pontos de vista, a mais importante companhia de dança em Portugal no século XX, venha também a contar com a colaboração de inúmeros pintores, como Espiga Pinto, Emília Nadal, Cruzeiro Seixas, José de Guimarães, Fernando de Azevedo, Pedro Calapez, Eduardo Nery e, obviamente, Paula Rego,  entre outros.

É, então, neste contexto, que surge Paula Rego como figurinista. Convidada a desenhar os trajos e adereços de cena para o bailado “Pra Lá e Pra Cá”, estreado pelo Ballet Gulbenkian em 1998, a artista teve aí, em toda a sua fantástica carreira e produção artística, a única intervenção e trabalho encomendado especificamente para palco.

 

O Ballet Gulbenkian, sem dúvida a mais importante companhia de dança portuguesa do século XX, foi criado pela Fundação Gulbenkian em 1965 e extinta em 2005, tendo tido como diretores artísticos o coreógrafo britânico Walter Gore, o croata Milko Sparemblek, o professor e bailarino Jorge Salavisa, a brasileira Iracity Cardoso e o bailarino e coreógrafo Paulo Ribeiro.

A sua extinção deixou um “enorme vazio” no panorama da dança em Portugal e, nas palavras do seu antigo bailarino Benvindo Fonseca “uma lacuna sem igual. Era um trabalho de excelência reconhecido em todo o mundo e um centro de afluência de todo o tipo de artistas que ali se formavam”.

Contudo, a Dança em Portugal continua e continuará sempre bem viva, sendo algumas das histórias que atrás evoca e das imagens que as ilustram uma homenagem a todos os criadores desta Arte (bailarinos, coreógrafos, cenógrafos, figurinistas, técnicos e muitos outros), em mais um Dia Mundial da Dança.

VIVA A DANÇA!!!

(*) Este conjunto de dispersos, que pretende ser apenas isso, tem como ponto de partida alguns dos doadores mais significativos de Museu Nacional do Teatro e da Dança e dos materiais existentes no acervo do mesmo.

José Carlos Alvarez

 

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